Sábado, de repente enquanto tinha minhas mãos e pés manipulados por lixas, alicates e esmaltes se estabeleceu um silêncio cheio de curiosidade na saleta cheia de mulheres. A jovem bonita à minha frente falava ao celular com bastante naturalidade e firmeza, sem baixar o tom da voz, sem preocupar-se com o possível julgamento da escuta.
Alô, que bom que você ligou. A gente precisa combinar um horário.
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Sim, ele está febril. A febre baixou.
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Mas, meu pai é médico, ELE avaliou… Agora só 37. Estava até pulando na cama elástica.
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Eu mandei parar pra não gastar energia. Ele está quase sem a doença. Muitas crianças adoeceram, mas é um vírus comum. Eu também já tive. Que horas você passa pra pegá-lo?
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Como assim? Ele está te esperando.
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Ele não está mais doente. Se estivesse com febre alta eu ficaria com ele. Mas ele está só febril. É teu final de semana. Eu tenho meus compromissos. E, ele está te esperando. Você vai furar novamente?
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Como assim não sabe cuidar do filho doente? Vai aprender, ué. E, ele está quase bom. Eu confio em você, sei que se ele piorar você vai medicar e fazer carinho e deixar ele deitadinho.
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O que? Claro que você consegue. E, é seu final de semana!
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Não. No próximo ele é meu. Eu quero ficar com ele, já temos programa agendado.
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Não acredito que você acha que eu tenho essa capacidade? Isso é ironia? Eu conseguir fazê-lo ter febre porque é seu final de semana? Me poupa!
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Eu só continuo essa conversa e não desligo o telefone porque quero que você pegue o nosso filho. Se ele estivesse mau, eu nem estaria falando mais nada. Mas não é o caso. E eu tenho compromisso nesse final de semana
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Eu queria saber o desfecho, se o pai cedeu e foi pegar o filho ou não, mas fui chamada na sala de depilação. Por ouvir somente um lado da conversa, eu estava incomodada com o que supunha terem sido as falas do pai…Eu não aceitei que o benefício da dúvida me permitisse sair do meu feminismo, talvez exacerbado!
Com a depiladora a conversa começou despretensiosa. Assim como eu tive, a Silvana também tem um familiar com Alzheimer, seu avô materno. Ela me contou rapidamente, como quem passa cera e arranca os pelos, a vida do avô, que ela admira muito. Ele ficou viúvo aos 32 anos. A avó morreu aos 30 num parto em que o bebê também foi natimorto. O avô ficou com 8 filhos. O mais velho, um menino de 12 anos, na sequência a mãe da Silvana, com 10 anos e a caçula tinha somente 1 aninho. O avô cuidou amorosamente dos 8 filhos. Trabalhava na roça, no interior do Paraná. Nunca mais casou e sequer namorou. Alguns vizinhos se mobilizavam e ajudavam de quando em quando. Pessoas surgiam pedindo que ele desse esse ou aquele filho, pois a vida era muito dura para sua família, eram muito pobres. Mas, meu avô jamais deu um filho, ela me contou orgulhosa!. A vida passou, os filhos cresceram, casaram e foram embora. Ele ficou sozinho e agora tem Alzheimer. Adivinha quem cuida dele, Regina? Eu, uma neta! Os filhos? Cada um tem sua desculpa.
Voltei para casa latejando de pensamentos para lados diversos. O que é o amor afinal? Dizem que quem ama, cuida! E quem não cuida, não ama? Ter filhos é ser pai? É ser mãe? Ser pai é cuidar dos filhos? Ser filho é cuidar dos pais? Ser velho é dar trabalho? Quem ama os velhos? O que é viver além de amar?
A única certeza que consegui apreender foi que a vida exige das pessoas atitudes que elas não haviam planejado. Quem vai enfrentar o quê, não há garantias. O que não apreendi, voou. Mas afinal, as certezas são gaiolas, não é mesmo?!
Regina Pundek
Por uma educação que contribua para a formação de sujeitos pacíficos, amorosos, autônomos, respeitosos, empáticos, atuantes, pensantes, batalhadores, corajosos, lúcidos e decididos. Capazes de atuar no mundo de maneira crítica e sensível.
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